Era uma jovem artista, diferente...
              contava apenas quinze primaveras,
              mas atraía em muita gente
    interesse, atenção, bondade, simpatia.
    Sabia interpretar mensagens de alegria
    e enriquecer canções que o público aplaudia em palmas e ovações mas, em casa, essa jovem
    assume outra figura:
Parecia uma fera caprichosa!
    Trazia exteriormente a beleza da rosa
    e por dentro de si todo um arsenal de espinhos. O pai, viúvo e só, notava isso
    e ao ver a filha única, vaidosa,
    ele, humilde operário, agarrado ao serviço,
    começou a beber, buscando o esquecimento. 
Lamentava a viuvez, a dor, o desalento...
E, ao embriagar-se, um dia,
    ouviu a filha, em dura rebeldia,
    a expulsá-lo do lar:
- "Vá-se embora daqui - disse a filha a gritar.
    O senhor já não manda nesta casa,
    um pai bêbado é nódoa para mim.
Tolerância sempre chega ao fim...
O seu vício me arrasa,
    saia, saia daqui, seu lugar é na rua!".
    O pobre pai mal pôde levantar-se,
    mas ergue-se, recua,
    vai cambaleando na calçada,
    enquanto a filha tranca a porta
    e vai dormir mal-humorada. Seis anos transcorreram sobre a cena.
    A menina fizera-se famosa. No circo de alto luxo, ela domina...
    Parecia, no trapézio, uma
 estrela divina
    ou borboleta humana,
    bailando soberana.
Era a dona dos prêmios e era vista por beleza sem 
				par e modelo
 de artista.
    Veio uma grande noite. Aplausos. Alegria.
    A platéia delira, a multidão aplaude,
    o número da moça é quase que magia. Há espanto nos olhos, êxtase nas almas...
    O trapézio voava, ela saltava e ria,
    de corpo seminu, em leve fantasia. Nisso ocorre um imprevisto.
Ante a platéia atenta,
    surge um curto-circuito e faísca violenta
    ateia fogo em cima e arrasam-se estruturas.
    A jovem trapezista atrapalha-se e agarra
    uma viga de amarra
    que fica nas alturas... Ela, a estrela da equipe, a moça bela e forte,
    grita e roga socorro, ao conhecer-se
    em presença da morte. O incêndio desata, o circo se esvazia,
    a jovem grita, grita e ninguém  a escuta;
    a multidão de longe apenas segue
    os detalhes cruéis daquela imensa luta.
Mas um velho palhaço, um canastrão de arena,
    vara o fogo e se eleva, em corda frágil.
    Eis que o povo lhe exalta a coragem serena... Certa viga, ao cair, 
				espanca-lhe a cabeça, ele, porém, não pára e,
 ante a fumaça espessa,
    alcança a moça aflita e, tomando-a nos braços, 
            desce, devagarzinho,
    procurando caminho,
    nos bancos chamejantes, em pedaços...
    Mas, ao depor no chão a moça linda e salva,
    ela sorri feliz
 e povo aplaude, prazenteiro.
    Entretanto, cai exausto o truão do picadeiro,
    tomba mostrando a boca, em larga flor de sangue... Era uma chaga só aquele corpo exangue.
    Arfa-lhe o peito enorme, a morte se aproxima.
Alguém chega e o reanima.
    É um velho amigo que reaparecera
    e que lhe arranca a máscara de cera...
    O povo se aglomera. Ante a cera que cai,
    a moça empalidece,
    ajoelha-se e grita, como em prece:
- "Meu Deus, ele é meu pai!"
    E ele nela fixando o olhar que se despede e brilha,
    num resto de calor e de ternura,
    tão-somente murmura: "Deus te abençoe, Filha do coração, meu amor, 
				minha filha!".
				(Maria Dolores)