Os grandes navegadores devem sua reputação
aos temporais e tempestades.
(Epicuro)

 


Fragmentos de "Alguém Que Já Não Fui"

Afinidade não é o mais brilhante, mas é o mais sutil, delicado e penetrante dos sentimentos.  O mais independente. Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades.  Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto, no exato ponto onde foi interrompido.

Afinidade é não haver tempo medindo a vida.  É uma vitória do adivinhado sobre o real.  Do subjetivo sobre o objetivo.  Do permanente sobre o passageiro.  Do básico sobre o superficial (da esperança sobre a experiência).

Ter afinidade é muito raro.  Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar.  Existia antes do conhecimento, irradia durante e permanece depois que as pessoas deixaram de estar juntas.  O que você tem dificuldade de expressar a um não afim,  sai simples e claro com quem você tem afinidade.

Afinidade é ficar de longe pensando parecido a respeito dos mesmos fatos que impressionam, comovem ou mobilizam.  É ficar conversando sem trocar palavras.  É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento.

Afinidade é sentir com.  Nem sentir contra, nem sentir para, nem sentir por, nem sentir pelo.  Quanta gente ama loucamente, mas sente contra o amado.  Quantos amam e sentem para o ser amado, não para eles próprios. Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo.  É olhar e perceber.  É mais calar do que falar.  Ou quando é falar, jamais explicar: apenas afirmar.

Afinidade é jamais sentir por.  Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo.  Mas quem sente com, avalia sem contaminar.  Compreende sem ocupar o lugar do outro.  Aceita para poder questionar.  Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar.

A afinidade não precisa de amor.  Pode existir com ou sem ele.  Independente dele.  A quilômetros de distância.  Na maneira de falar, de escrever, de andar, de respirar.  Há afinidade por pessoas (não seria com pessoas ?)  a quem apenas vemos passar, por vizinhos com quem nunca falamos e de quem nada sabemos.  Há afinidade com pessoas de outros contentes a quem nunca vemos, veremos ou falaremos.

A afinidade é singular, discreta e independente, porque não precisa de tempo para existir. Afinidade é adivinhação de essências não conhecidas nem pelas pessoas que as têm.  Afinidade é retomar a relação do ponto onde parou, sem lamentar o tempo da separação.  Porque tempo e separação nunca existiram.  Foram apenas a oportunidade dada (tirada) pela vida, para que a maturação comum pudesse se dar.  E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais, a expressão do outro sob a forma ampliada e refletida do eu individual aprimorado.   

Arthur da Távola

1403

 
 
 
     
 

 

 

   

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