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Do coração de uma mulher
Pensando bem, não sou essa mulher fatal que você pensa que eu sou. Aquelas
histórias de sedução foram todas inventadas e esse ar superior, de quem
sabe lidar com
a vida, é apenas auto-defesa. Aquelas frases filosóficas, foram só pra te
impressionar, pra te passar essa ilusão de intelectual... na verdade
eu ainda nem sei se acredito nos valores que me ensinaram,
quanto mais em frases feitas e opiniões formadas!
Senta aí, vai! Deixa
eu tirar os sapatos, desmanchar o penteado, retirar a maquiagem...
quero te mostrar que
assim de perto não sou tão bonita quanto pareço, por
isso uso todos esses artifícios. É que no fundo tenho um medo terrível de
que você me ache feia, de que você
encontre em mim uma série de imperfeições.
Sabe, não quero mais usar
essa máscara de mulher
inatingível, de mulher forte com punhos de aço... No íntimo me sinto uma pequena ave indefesa, leve demais
para enfrentar o vento e que deseja ficar no aconchego
do ninho e ser mimada até adormecer.
Olha pra mim, às vezes minha intimidade não tem brilho nenhum e você
terá que me amar muito
para suportar essas minhas impotências.
Deixa eu tirar o casaco, tirar o cansaço... essa jornada
dupla me deixa tão carente... A convicção de independência
afetiva? É tudo balela! Eu queria mesmo era dividir a cama, a mesa, o banho...
Queria dividir os sentimentos, os sonhos, as ilusões... um pedaço de
torta, uma
xícara de café, algum segredo...
Ah, eu tenho andado por aí, tenho
sido tantas mulheres que
não sou! Quantas vezes me inventei e até me convenci da minha identidade. Administrei minha
liberdade. Tomei aviões, tomei whisky... troquei a lâmpada, abri
sozinha o zíper do vestido... decidi o meu destino com tanta segurança... mas não previ que na linha da minha
vida estivesse demarcada uma paixão inesperada.
Agora, cá estou eu, trinta e poucos anos e toda atrapalhada, tentando um cruzar de pernas diferente, um olhar mais grave, um molhar de lábios
sensual... mas não sei direito o que fazer para agradar.
Confesso que
isso me cansa um pouco. Queria mesmo era
falar de todos os meus medos, "dos seus medos?" você diria, como se eu nunca tivesse
temido nada.
Queria lhe falar das minhas marcas de infância, dos animais que tive, do meu primeiro dia de aula... queria falar dessas coisas mais elementares, e lhe levar à casa da minha
mãe, lhe mostrar meu álbum de retrato (eu, me equilibrando nos primeiros passos ), ah, queria lhe mostrar minha primeira bicicleta, com truques. Ela ainda existe!
Queria lhe mostrar as árvores que eu plantei
(como elas cresceram!) e todas
essas coisas que são tão importantes pra mim e tão
insignificantes aos outros. Ah, você queria falar alguma coisa? Está
bem! Antes,
só mais uma coisinha: estou morrendo de medo que você saia desta cena antes de mim, que você saia, à francesa,
desta história e eu tenha que recolocar minha máscara e me reinventar,
outra vez.
(Autora: Lucilene Machado)
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