É uma calamidade não possuir bastante espírito para falar bem,
nem bastante bom senso para ficar em silêncio.
(La Bruyère)

 
 


                            Minha única prece

Estamos alojados na base de uma saliência rochosa, com o cume muito acima de nós, e observamos o chuvisco cair, cansados de escalar e de fugir da chuva.

Tristan, meu neto de 11 anos, está comigo. Ele sabe tudo sobre pouso de marcianos e ciberespaço. E se você pensa que é só isso - um garoto interessante da era tecnológica - ele dá o nome dos deuses gregos e conta como os cidadão rezavam a eles.
- Talvez devêssemos rezar um pouco aqui - digo, observando a chuva ficar mais forte.
- Rezar funciona realmente? - pergunta ele. - A oração nos tiraria mesmo daqui?

Penso cuidadosamente no que vou dizer...., porque não sou um religioso. Tive a minha parte de dores e acidentes no deserto. Ferroadas de escorpiões, ossos quebrados, desidratação tão grave que meus olhos ardiam. Mas nunca rezei por nenhum desses motivos. Sempre pensei que, se me colocava por minha vontade nessas situações, cabe apenas a mim sair delas. Deus provavelmente não está interessado.

Sempre pensei também que a prece seria o último recurso. Mas todas as vezes que chegava ao fim, não havia tempo para rezar. E, no final, tudo o que podia fazer era maravilhar-me por ainda estar vivo. Portanto, nunca rezei. Exceto uma vez.

Em 1978. de madrugada, quando os topos das árvores ainda estavam ocultos pela escuridão, estacionei meu caminhão e entrei no deserto de Gila, Novo México. Meu plano era caminhar 32 quilômetros e depois me encontrar com um grupo de nove alunos e instrutores da Outward Bound School, uma "patrulha". Eu era o diretor da escola e estava preocupado com aquela patrulha: três alunos de uma escola particular da Nova Inglaterra, um calouro da universidade, três formandos da escola secundária de Dallas e dois meninos de rua do sul de Chicago, que haviam sido condenados a freqüentar a Outward Bound em lugar de irem para a cadeia.

Estava ansioso para caminhar no Gila. Mesmo após passar metade da vida ao ar livre, nunca me sentia satisfeito. Era o auge do verão e o sol estava implacável. Ao meio-dia parei, bebi um pouco de água e, pela primeira vez, percebi o calor em minhas botas.
Não eram botas novas. Já as usara algumas semanas e pensei que estivessem prontas para o Gila. Estava errado.

Tentei tudo para obter alívio: parei e arejei os pés, coloquei meias adicionais, acelerei o passo, reduzi o passo, apertei os cadarços, enrolei os pés em tecido grosso. Nada funcionou.
Alcancei o acampamento no meio da refeição da noite, tirei as botas e as meias e caminhei um pouco no chão macio da floresta. Examinei meus pés e contei 11 ferimentos, entre bolhas e pontos machucados. Apesar disso, não comentei meu problema com ninguém. Sentados, conversamos durante horas. Após duas semanas no deserto, apenas um dos meninos da Nova Inglaterra parecia desencantado com o curso. Tentara desistir, porém fora convencido pela equipe a continuar.

Na manhã seguinte, aquele menino sumira. Partira horas antes, seguindo a trilha por onde eu viera. Não poderíamos deixa-lo entrar sozinho no deserto cruel. Calcei as botas demoníacas e fui atrás dele.
Logo percebi que não estava apenas mancando - andava como se estivesse descalço sobre vidro quente. Enquanto arrastava os pés, tentava manter a mente acima dos tornozelos. Novamente, nada funcionou.

Nova sensação invadiu minha consciência. Percebi que vinha das botas. Sentei-me sob uma árvore caída, segurei os pés em frente a mim e, pelos ilhoses, vi a lama sangrenta. Se tirasse as botas, nunca as calçaria de novo. Por fim a trilha saiu dos arbustos e seguiu direto para o rio Gila, que descia das montanhas passando por desfiladeiros sombrios. Eu mal podia esperar para senti-lo em meus pés, que cozinhavam. Entretanto, quando a água invadiu minhas botas, a sensação de ardência foi substituída por milhares de agulhadas que pareciam perfurar todas as bolhas.

Meu grito percorreu o desfiladeiro e joguei-me de cara na água. Depois me levantei e cambaleei pelo rio. Como não havia solução racional para meu problema, minha mente começou a criar saídas irracionais. A resposta, obviamente, era... um cavalo. Se tivesse um cavalo, meus pés não seriam mais problema e eu poderia alcançar o menino da Nova Inglaterra.

Como Ricardo III, rei da Inglaterra, comecei a implorar: "Dêem-me um cavalo! Tenham piedade!" e qual era a palavra seguinte? Ah, sim. "Jesus!". Eu sabia que só conseguiria dar mais uns 100 passos, se tanto, e depois teria de parar, sentar-me e aguardar. Provavelmente não veria ninguém durante vários dias.

O sol estava baixo atrás de mim, e minha sombra se estendia até bem longe na trilha de pedra. Eu nunca chegaria ao fim de minha sombra. Decidi parar. O ombro direito de minha sombra se moveu, algo escuro se destacava no início da trilha. Grande massa, agora imóvel, bloqueava a maior parte do sol, uma cabeça se alongava atraída por minha presença.

Era um cavalo. Um fantasma nascido da dor. Deus, pensei, a mente é algo maravilhoso. Era um belo cavalo, mas eu teria de fazê-lo ir embora. Portanto o enfrentei diretamente, manquei até onde estava e agarrei o cabresto. Era um cavalo real.
O animal tinha cabresto e rédea, porém estava sem sela. Algo que eu não entendia estava ocorrendo, mas não ia questionar. Segurei a rédea e lutei para subir no lombo do cavalo, murmurei enquanto ele me carregava calmamente ao longo da trilha para dentro da escuridão "Jesus".

O cavalo caminhou durante toda a noite e só parou quando chegamos ao fim da trilha, onde encontrei o menino da Nova Inglaterra sentado na carroceria de meu caminhão. Tirei as odiadas botas, enfaixei os pés e levei o cavalo até um gramado. O menino e eu dormimos por perto. Bem cedo, dois vaqueiros apareceram procurando o cavalo. Disseram que ele nunca fugira antes, não sabiam porque o fizera dessa vez.

Contaram que o nome do cavalo era Rei.
A chuva se transforma em neve e penso que talvez Trístan e eu tenhamos que dormir ao relento na tempestade, na montanha onde não há cavalos. Ele se encosta em mim, e sorri. - Você rezou realmente? - pergunta - Pediu um cavalo?
- Bem... Eu estava meio sem rumo. Delirando. Não tenho certeza de que algo do que disse possa ser qualificado como rezar.
- Acho que rezou sim - diz Trístan. - E conseguiu o que pedira, e isso o assustou.

Como sempre, ele chegou ao âmago do problema.
A neve desapareceu e a neblina espessa envolve a montanha. No entanto, por trás da névoa há uma luz brilhante, primeiro prateada e depois dourada.
- É mesmo, não é? - admiti - eu rezei.

Saímos da saliência e começamos a descer a montanha, o ar espesso com o néctar que se segue às tempestades. É um dos melhores dias de minha vida.
As orações ainda me fascinam. Talvez não devesse relega-las como último recurso.

(Lee Maynard)



2028
            

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