Não confunda jamais conhecimento com sabedoria. 
Um o ajuda a ganhar a vida; o outro a construir uma vida.
 



Era meu pai                      


Recordo hoje, um relato de Dolores.
Das muitas confidências que me fazia...essa me marcou profundamente.

Posso quase ouvi-la contar...

"Lembro dele assim:
Pele enrugada, cabelos grisalhos lisos e fartos, corpo com alguns quilos acima do peso, fruto do sedentarismo, da acomodação.
Mas o que mais marcava, em sua presença eram os olhos: vivos, inteligentes, perspicazes.
Era motorista. Tinha a ginga e o linguajar peculiar à classe.
E bebia. Tentou afogar, enquanto viveu, suas mágoas, sua vida mal-resolvida no copo. Fumava também. Muito. Outra de suas muletas emocionais.

Do seu vício, nasceu uma família desajustada, inconformada.
O que já era difícil, ficava, por vezes, impossível.
Tudo era motivo para encher a cara: a raiva, o custo de vida, o dia difícil, as queixas da mulher....a vida...
Tenho na retina, gravada a fogo e dor, um episódio lamentável...
Estávamos no portão, Era comum essa reunião na porta, à noite, nas cidadezinhas do interior, àquela época.
Minha casa ficava a 100 metros da esquina. Ao levantar os olhos, vimos aquele homem trôpego, cambaleante, tentando andar escorado à parede.
Estava tão embriagado, que tombou. Ficou ali, esticado na calçada, o rosto voltado pro céu...sem o ver.
Um misto de vergonha e dor, varreu todos nós. Alguns dos meus irmãos, éramos nove, viraram às costas, entrando em casa. Minha mãe chorava baixinho.

Foi quando fui atingida por uma verdade irrefutável. Uma dor que pela primeira vez entendi.
Não importava se estava tombado: era o meu pai.
Não importava se era um ébrio...era o meu pai.
Se era pobre, com pouco estudo, maltratado pela vida, arrasado pelos próprios erros e por tudo que lhe era de direito...e a vida lhe negou. Era meu pai.
Desci do muro, pequena, magra...e com toda a arrogância que só os quinze anos dão, ergui o queixo, e marchei em sua direção.
Luta vã...eram muitos quilos para minha pequena figura. Semi-inconsciente, não conseguia se manter em qualquer posição. Quando o levantava de um lado...caia para o outro.
O suor já escorria por todo o meu corpo, grudando os cabelos em meu rosto, quando, vendo o que eu fazia...dois de meus irmãos a mim se juntaram. Aos poucos, todos vieram, e o erguemos e levamos para casa.

Foi dado um banho em seu corpo quase inerte. Colocamos ele delicadamente na cama...pé ante pé...foram saindo...e fiquei mais um pouco ali, quieta, olhando aquele rosto marcado, sofrido...e pensei que jamais voltaria a me envergonhar.
Não importaria o que dissessem, o julgamento que fariam.
Em sua condição humilde, cumprira sua missão: estávamos criados, saudáveis, encaminhados. Éramos gente de bem, sem atos dos quais se envergonhar.
E fosse qual fosse a dor que o levava àquele extremo...haveria de passar.

Era meu pai. Não me esqueceria disso. Não me envergonharia disso.
Penso hoje, que ele já se foi, no quanto uma geração pode construir ou destruir muitas outras. O desajuste da família dele, o desajuste da família de minha mãe, gerou os dois: incompatíveis e amargos. Eles por sua vez, marcaram com suas ações a nós. Cada um de nós, a sua maneira, extravasa em suas casas, hoje, o resultado daquela vida triste e sacrificada.
Vigio, rezo e rogo aos céus, para que me conduza. Para que o elo de erros se quebre....e possa influenciar meus filhos de forma positiva e acertada."

Sem dúvida é um relato, que nos leva a pensar. Sobre nossos feitos e seus reflexos. Senti meu amor se expandir por minha amiga, rezando silenciosamente pelo sucesso do seu intento.

Boa sorte, querida Dolores...minha doce amiga.

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Maktub

 
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